O Relógio (pequeno conto duriense)

O RELÓGIO

Adaptação de acontecimentos verídicos


Nas primeiras décadas do século XX, raros eram os trabalhadores agrícolas das aldeias vinhateiras do Douro que usavam relógio.
O trabalho agrícola no Verão, em determinada zona, era feito essencialmente desde a madrugada, assim que o dia começava a clarear, até às 13 horas e 30 minutos, com uma pequena paragem para almoço, se é que assim se podia chamar aquela pequena refeição.
*
Maria Antónia acabava de chegar à quinta, acompanhada por alguns colegas de trabalho, homens e mulheres, já os esperava um capataz que, logo a resmungar, criticou a atitude mais vagarosa de alguns dos trabalhadores. Tal como os outros, Antónia fizera já cerca de três quilómetros a pé, de casa até ali.
- Não é por muito madrugar que amanhece mais cedo (diz o Toino Joaquim, um pouco malicioso).
- Hoje vocês vão ver se saímos à hora certa, ou não !... – diz a Antónia em voz alta para os seus colegas – não hão-de brincar mais comigo !
- Não tens “papas na língua”, qualquer dia não te dão trabalho… (Manuel à boca pequena).
- Ela tem sempre trabalho porque faz tanto ou mais que um homem… (Joaquim).
- É pequenina, a Antónia… (Manuel).
- A mulher e a sardinha, querem-se pequenas… (Joaquim de novo).
*
Entregam-se ao trabalho, após mais uma repreensão do capataz.
As horas vão passando e o calor começa a apertar.
Param pouco depois das 10 horas e, enquanto comem um bocado de toucinho ou uma sardinha com pão e vinho, vão conversando.
- Esta água-pé que aqui trazem está cada vez mais envinagrada …(Joaquim).
- Pudera, vinho que vai para vinagre, não arrepia caminho, é como o capataz, está cada vez mais azedo.
Entretanto o Joaquim, desconfiando serem já mais perto das 11 horas do que das 10, como lhes dissera o capataz, faz a sua experiência, improvisando um relógio de sol, com um pau espetado no chão, analisando a direcção da sombra e procurando uma colina conhecida que lhe sirva de referência para saber dum ponto cardeal.
Para ele, são já mais de 11 horas.
Os outros, com receio, tentam disfarçar a experiência, de modo a que o capataz não se aperceba, enquanto que a Antónia, mais para os seus botões do que para os circundantes riposta:
- Eu sei bem que horas são…
- Ná… isto aqui anda moiro na costa (diz o Manuel referindo-se à Antónia).
*
Regressam às enxadas e às outras alfaias com que trabalham.
O sol torna-se agora abrasador, o cansaço, a sede e a fome aumentam.
Os trabalhadores perscrutam insistentemente, a ver se o capataz ou o patrão aparecem para terminarem a jornada de trabalho e regressarem a casa.
Um ou dois começam a murmurar, achando que passa já muito da uma e meia da tarde.
Até que estala a discussão entre o capataz que por ali passa e a Antónia.
O capataz , querendo com um gesto demonstrar que ainda não está na hora, pega na corrente dourada, retira do bolso o seu relógio, olha para ele com toda a calma e informa os trabalhadores:
- É uma hora e um quarto !
De imediato a Antónia avança em direcção ao capataz, coloca a perna direita mais à frente, levanta a saia desse lado e logo se descobre, para espanto de todos, um relógio atado à perna por um fio. A resposta é imediata:
- Só se for no seu (relógio), porque no meu já passa das duas horas !
O capataz, desorientado, manda o pessoal embora, dentro de alguma agitação.
*
No regresso a casa, subindo agora os cerca de três quilómetros sob o sol escaldante, os trabalhadores vão comentando o sucedido e dando vivas à Antónia.
No dia seguinte, ao chegar à quinta, a Antónia é recebida pelo patrão que lhe diz de rompante:
- Vai procurar outro patrão, porque na minha casa não há-de trabalhar mulher que use relógio !
*
A partir desse dia, pelo menos naquela quinta, passou a cumprir-se o horário de trabalho.

Quando eu nasci

Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa - salvar a humanidade.

Almada Negreiros

Textos

VEJAM ESTE TEXTO SOBRE OS PROFESSORES, A ESCOLA, ETC
(Extracto dum texto de autor brasileiro)

… descobrimos que nós, professores, somos trabalhadores, e trabalhadores que produzem uma mercadoria muito especial, que é o coração do capitalismo, pois é a única que tem a propriedade de criar valor (mais-valia): a força de trabalho. Somos trabalhadores que produzem trabalhadores. O Capital soube incorporar a educação à sua lógica, de forma a criar sistemas de ensino que funcionam como empresas produtoras de trabalhadores em série, para atender às demandas de mão-de-obra do mercado para a acumulação de Capital.
O professor exerce esse trabalho, incutindo nos alunos as duas características básicas da força de trabalho: a disciplina e as qualificações. Como o processo capitalista de trabalho é um processo de exploração, ele exige uma dose igual de opressão sobre o proletário empregado como “mercadoria viva”. A escola entra como uma instituição disciplinar e repressiva na medida em que interioriza no aluno, desde criança, a obediência a hierarquias, horários, controles de presença, notas e o desempenho de tarefas pré-determinadas, quantificadas, etc. E depois, atua como qualificadora, na medida em que habilita o aluno, como futuro trabalhador, a exercer trabalho mais simples ou mais complexo (o aluno aprendendo mais ou menos habilidades). Sendo assim, o trabalhador mais qualificado exerce trabalho mais complexo e produz muito mais valor (mais-valia) do que o trabalhador menos qualificado. Dessa maneira, o sistema de ensino vira um espelho das exigências do mercado de trabalho. Como este possui, cada vez mais hoje, uma hierarquia onde uma minoria cada vez mais reduzida de trabalhadores exerce trabalho produtivo qualificado (e por conseqüência bem remunerado e com direitos), e uma maioria composta de trabalhadores precarizados, terceirizados e mal remunerados (de menor qualificação), ou mesmo desempregados, o sistema de ensino passa a refletir essa hierarquia. As universidades e as escolas técnicas formam o primeiro grupo, mais qualificado e restrito, e o ensino público de massas forma o segundo grupo, dos precarizados e do exército de reserva (segue daí que quanto mais se expande o número de pessoas com diploma, a oferta de força de trabalho cresce em relação à demanda e os salários se tornam mais baixos). A deterioração das condições de trabalho da maioria da população se reflete na deterioração das condições da escola pública. A tão alardeada “educação universal” ou o discurso da educação para todos, que os governos defendem, em nenhum momento diz que essa educação deva ser de nível igual para todos.
Como podemos ver, nós professores das escolas públicas somos, na verdade, trabalhadores produtivos (proletários). Embora juridicamente nosso empregador seja o Estado, na medida em que produzimos trabalhadores (o “capital humano”), estamos inseridos na cadeia de produção das empresas que os empregam (telemarketing, indústrias, supermercados, etc); e nosso trabalho é produtor de mais-valia, uma vez que é organizado segundo as relações de trabalho e a lógica de empresa. Isso explica também porque cada vez mais é aplicada na escola a lógica de empresa em sua organização interna. Não é o estatuto jurídico que determina se há ou não exploração ou geração de valor, mas o lugar ocupado no processo de produção e a forma de organização do trabalho. Ou seja, o professor da escola pública também é explorado, como o da escola privada (embora na escola privada esta exploração seja mais intensa e com menos proteção trabalhista). O Estado (no sentido de estado restrito, nacional) não se apresenta como uma esfera externa à valorização do capital, mas como um aparelho que faz parte dela, é um momento dela, e está inserido nos ciclos de produção e reprodução do valor.
As escolas são cada vez mais invadidas pela lógica de produção de mercadorias, e nosso trabalho é organizado como na indústria. Cada vez mais as tarefas são padronizadas rigidamente e nosso trabalho é medido e avaliado quantitativamente. A escola está sendo “taylorizada” (taylorismo é o sistema tradicional de gestão de indústria, extremamente opressivo, do qual o “toyotismo” é só um derivado), e é invadida por um surto quantitativista, onde a última panacéia é a “avaliação de desempenho” e a “meritocracia” (antes predominava uma organização burocrática de cunho fayloista [baseado na administração segundo Henri Fayol], mas o aspecto quantitativo do taylorismo tem sido reforçado). Os diretores são transformados em gestores e tem um poder repressivo de controle reforçado. Cada vez mais somos realmente operários. Nossas tarefas são padronizadas como numa indústria e somos despojados de qualquer controle sobre nossas condições de trabalho (a padronização de currículos e materiais nada mais é do que isso, o sistema Taylor aplicado na educação). O aumento da pressão por disciplina e resultados dentro duma escola significa o mesmo que aumentar a velocidade de uma linha de montagem. A opressão das condições de trabalho cresce tanto que os professores desencadeiam uma série de mecanismos defensivos para não serem destruídos fisicamente – faltas (absenteísmo), licenças médicas, trabalhar mais devagar, “macetes”, etc. Tal processo é idêntico à resistência generalizada que ocorre dentro de fábricas, onde os operários espontaneamente derrubam a intensidade e velocidade da produção como forma de resistência à exploração e intensificação do trabalho.